Tempos modernos, práticas antigas
Ontem meu filho chegou da faculdade com a novidade da nova política para lidar com a inteligência artificial, estabelecida pela instituição: os trabalhos a serem entregues devem ser feitos à mão, em sala de aula. Já tinha visto esta reação por parte da diretoria de ensino médio da cidade de Nova Iorque. Minha reação foi imaginar até quando tentarão conter a onda disruptiva pela qual estamos tragados. Me lembrei dos meus remotos tempos de estudante de educação básica, quando não podia usar calculadora. Depois dos tempos em que não podia usar aquela novidade chamada computador pessoal. Como sou do tempo de enciclopédia Barsa, acompanhei todas essas transformações e constatei o quanto é inútil resistir à inovação.
Tentar resistir à inovação no passado era algo que funcionava durante anos, pois as mudanças ocorriam de forma muito mais lenta. Mas agora é diferente, pois as transformações são muito mais impactantes, são disruptivas. Além do mais, ocorrem de forma muito mais rápida e não apenas do lado do aluno. Também do lado do docente. Tentar impedir que um estudante não use inteligência artificial como ferramenta para fazer um trabalho pode até parecer algo justo. Afinal, se está em busca da demonstração de competência para elaboração de ideias. Talvez a forma como isso esteja sendo feito é que é um tanto inapropriada.
Ao invés de tentar cercar o estudante de condições para o impedir de usar a IA para desenvolver trabalhos, é o caso de incentivar o uso, passando a cobrar um resultado muito mais sofisticado. Afinal, na realidade do mercado de trabalho, a IA já está se tornando ferramenta rotineira. Não vai ser forçando o estudante a escrever à mão um documento que vai aprimorar o processo de aprendizagem e de sua avaliação. Pelo contrário, vai impedir o uso de algo que já faz parte da realidade de mercado, na busca de se manter um status quo que rapidamente evaporou. Estou falando de um arco de tempo de 3 meses apenas, não de 3 anos, em que a IA deixou de ser algo distante, presente em filmes de ficção científica, para estar em nossas mãos, para uso pessoal e/ou profissional.
Talvez seja pedir muito da academia acompanhar a velocidade do mundo real. Pois o grande problema para dificultar a adaptação aos novos tempos que se transformam de modo cada vez mais abrupto é o docente, acostumado a movimentos lentos em meio a uma briga de faca promovida por ninjas. O docente tem que partir para abraçar a transformação, pois ela é inexorável. Ao invés de proibir o uso de IA, deve incentivar. E como se espera resultados mais sofisticados, de melhor qualidade e em menos tempo, então deve elevar o nível de avaliação.
O que antes era entregue só com texto, que agora pode ter ajuda de IA como ChatGPT, Writesonic e Copymatic, agora pode ser exigida a entrega acompanhada de peças gráficas geradas com o uso de IA como o Dall-E2, Midjourney, Hotpot, Deep Nostalgia e Playground. Mais, também se pode levar o estudante a usar IA voltadas para design (ex: Flair), apresentações (ex: Tome), voz (ex: Cleanvoice), Música (ex: Beatoven), vestuário (ex: OutfitsAI), arte (ex: Fotor), marketing (ex: Ocoya), e tantos outros que podem ser encontrados focados em diversos segmentos, além destes exemplificados. E note que, dependendo de quanto você leia este texto, esta lista estará desatualizada, pois a evolução da IA é medida em semanas, não meses, muito menos em anos.
Nós já temos condições de enviarmos uma foto de nossa geladeira para uma IA e pedir uma receita de comida que possamos fazer com o que seja identificado na foto. As IAs já têm capacidade de identificar humor num rabisco de um coelho segurando uma máquina fotográfica, descrevendo precisamente o que tem na imagem, com destaque sobre a intenção comunicacional de quem rabiscou. Já podemos solicitar para uma IA analisar as mensagens enviadas por várias pessoas em um grupo de email, discutindo sobre algum tópico, e pedir para que faça um resumo, revelando em poucas palavras a posição de cada um dos remetentes sobre o tema em debate. Criação e análise de textos já se tornaram banais pelo amplo uso de IAs para tais atividades. Em breve, talvez ainda este ano, também será popularizada a interação audiovisual com IAs de todo tipo, através de diferentes tipos de dispositivos (celulares, computadores, wearables, …). Mediante uma realidade tão concreta em nossas vidas, parece uma luta inglória, e até contraproducente impedir o uso de tais recursos no processo de aprendizagem.
Assim, o docente deve, ao invés de resistir, aderir à inteligência artificial. Não apenas permitindo que seus estudantes façam uso deste ferramental em atividades acadêmicas, como incentivando seu uso, pois o mundo fora da fronteira da academia já está em plena adesão à essa mudança disruptiva. O profissional de nível superior que ficar sem usar IA, fica para trás, perde o emprego, ou sequer consegue uma vaga no mercado de trabalho. Muito em breve isso também ocorrerá com docentes. Afinal, a atividade docente também é impactada pela IA, com uma brutal mudança na forma como professores se atualizam, preparam aulas, corrigem trabalhos, escrevem artigos, fazem pesquisa, dentre outras atividades inerentes à rotina docente.
A demonstração de aprendizagem em um processo educacional, portanto, já está sendo afetada pela IA a partir do momento que o acesso à este ferramental se torna, de forma aceleradíssima, tão comum quanto o uso de um buscador como o Google. Por isso a avaliação, tal como todos os outros processos educacionais de ensino aprendizagem, precisa ser repensada, e sem demora. A avaliação da aprendizagem despida de qualquer influência de IA pode ser feita por metodologias ativas de aprendizagem, pela capacidade da narrativa do estudante sobre o tema envolvido na aprendizagem, com a observação do seu comportamento em situações de interação social e capacidade de raciocínio. Pelo menos enquanto a IA não puder ser implantada em nossas cabeças. O que não demorará muito.
Por isso faço votos que os educadores, para o bem deles mesmos e de seus pupilos, encarem IA como mais um aliado no processo de aprendizagem, e não uma ferramenta de ajuda à burla da avaliação desta aprendizagem. Para tempos modernos, práticas antigas só servem para atrapalhar. Atualizemos nossas práticas então, de modo que possamos usufruir desta nova realidade que já se instalou entre nós.