Software livre e seu modelo de negócio

Desde os primórdios da informática (que nome antigo!), nos anos 80, fomos submetidos a diferentes modelos de negócios desta indústria. Primeiro veio os softwares gratuitos (diferentes de softwares livres), que vinham equipando os equipamentos computacionais como um assessório de menor valor. Os softwares serviam apenas para dar sentido pagar milhares de dólares por um equipamento que representava o que tinha de mais novo numa casa ou escritório: um PC (personal computer) ou Mac (aludindo aos equipamentos da Apple).

Venda por licenciamento

Mas logo os fabricantes de hardware viram que não teriam condições de oferecer toda a gama de softwares que os consumidores tinham como demanda. Então surgiram fornecedores independentes de softwares, especialmente aplicativos de produtividade e de jogos. O modelo de negócio era simples como vender um ventilador. Você ia numa loja e comprava o programa, que era entregue em mãos, gravados em mídia como disquetes, CDs ou DVDs (para quem não tem idade para saber o que significa tais termos, clique nas palavras para ter uma explicação). A compra tinha efeito perpétuo, ou seja, pagava-se uma única vez e o direito de uso era para o resto da vida. Assim surgiram marcas que conhecemos até hoje, como Microsoft, Adobe, Oracle, Autodesk, entre tantas outras que construíram impérios empresariais iniciando com vendas de softwares gravados em mídia física.

Aluguel de licenciamento

A internet, já nos anos 90, permitiu a virtualização da entrega de produtos de software, pois a entrega já podia ser apenas de uma chave de licenciamento de uso, utilizada para ativar o programa depois que ele era baixado do site da empresa na Internet. No final dos anos 2000 começou a surgir o modelo de negócio seguinte, o de aluguel de software. Não mais se vendia a licença perpétua para se usar o software, se alugava tal licença, com pagamentos mensais ou anuais. A pioneira disso foi a Adobe, com seu pacote Creative Cloud.

Nos anos 2010, além das empresas manterem o modelo de negócio baseado em uso de software instalado no computador com licença alugada, surgiram os SaaS (Software as a Service). Três foram os principais fatores para isso:

  • a popularização da internet banda larga, propiciando conexões rápidas e estáveis;
  • o barateamento do custo de manter servidores que rodam programas complexos com seu usuário remotamente operando através de um navegador web;
  • a padronização dos navegadores para servirem de interface do usuário de softwares que rodam em servidores (e não localmente como um software instalado no computador do usuário).

O negócio de software como um serviço a ser alugado e não vendido, que gera recursividade de pagamento, deu tão certo que foi imitado por outros setores da economia. Hoje temos o iFood tentando nos vender mensalidade pelo Clube de Descontos, marcas de carro ativando funcionalidades originalmente embarcadas nos veículos vendidos mas só ativadas via Internet mediante pagamento de mensalidade, e o Mercado Livre procura vender o serviço de entregas gratuitas de produtos comprados mediante mensalidade. É um modelo de negócio que veio para ficar!

Software livre

Durante todo este tempo em que vigoraram diferentes modelos de negócio na indústria da informática, com venda de software com licença perpétua, aluguel de licença e SaaS, um outro modelo tem se mantido quase imutável, o modelo do software livre. Trata-se de um modelo em que se desenvolve um software que é disponibilizado gratuitamente para quem quiser usar, inclusive alterar o código antes de usar, caso alguém ache necessário.

Importante: Software livre não é a mesma coisa de software gratuito. Um software para ser livre precisa ter código aberto para quem quiser ver o que está escrito, bem como modificar tal código para acrescer ou retirar funcionalidades, ou mesmo criar outro software a partir do primeiro. Há softwares gratuitos que não são livres, pois o código não é aberto e, portanto, não pode ser modificado. Em geral o software gratuito ou apresenta alguma limitação funcional, liberada apenas na sua versão paga (ex: Acrobat Reader e programas antivírus); ou invoca algum tipo de assinatura de serviço (ex: Dropbox, Spotify e Skype). 

O caso Linux

Talvez o caso mais emblemático deste modelo seja o Linux, o sistema operacional de código aberto. O Linux foi criado em 1991 pelo programador finlandês Linus Torvalds, então um estudante de ciência da computação na Universidade de Helsinki. Ele desenvolveu apenas o núcleo do sistema operacional, disponibilizou o código gratuitamente para que outros programadores acrescentassem contribuições, o que rapidamente tornou o Linux um sistema operacional completo. Por ser de código aberto, com licença inclusive para que se monte negócios com o uso do código, logo surgiram empresas que desenvolveram produtos sofisticados, baseados no código original, as chamadas distribuições do Linux: Red Hat, Fedora, Debian, Ubuntu, entre outras. Cada uma delas tendo o código mantido pela empresa correspondente, que também distribui o sistema aprimorado gratuitamente (exigência feita para usar o código original do Linux).

Mas como estas empresas sobrevivem, se o produto que desenvolvem é gratuito? Porque o que é vendido é o serviço sobre o produto: personalização do código, suporte técnico, consultoria, implantação, segurança da informação, entre outros. Essa é a essência do software livre: o produto é gratuito, mas em torno dele gravitam prestadores de serviço. A ação destas empresas é fundamental para ter um produto competitivo, apesar do produto em si ser gratuito. Pois elas agregam ao software livre puro uma interface mais amigável (gráfica) que a original (baseada em prompt branco em tela preta), capacitação e suporte técnico especializado, que são justamente os valores anunciados pelos produtos concorrentes pagos para justificar a sua compra.

Software livre (gratuito) ou proprietário (pago)?

Quando se vai decidir sobre o uso de um software livre ou um pago, um fator importante que vem em mente é o TOC (Total Cost of Ownership), ou custo total de propriedade. O TOC inclui o quanto se paga pelo software (que no caso do software livre é gratuito), mas também inclui o custo de capacitação de pessoal envolvido, o suporte técnico especializado, entre outros fatores constantemente mencionados por quem vende software pago como sendo vantajosa a compra, ao invés do uso de software livre. Mas não é bem assim.

Há diferentes níveis de maturidade de softwares livres. É verdade que há aqueles que podem gerar um enorme problema para quem por eles optarem sem o respectivo mantenedor simplesmente deixar de evoluir o código do software (atualizações de funcionalidades, segurança da informação, integração com outros sitemas, etc). Mas isso não ocorre com com softwares livres que têm uma sólida estrutura comunitária e empresarial de desenvolvimento e suporte.

Este é o caso do Linux e suas distribuições, que ocupam o segundo lugar no market share de sistemas operacionais de servidores de internet, atrás (de perto) apenas do Microsoft Server. Ganha do produto pago da Microsoft em termos de segurança, desenho e estabilidade, perdendo apenas em termos de facilidade de uso e suporte (mesmo que pago). Nossa infraestrutura web, por exemplo, é toda baseada em sistema operacional Linux, pois o produto da Microsoft não aguenta a demanda que o Linux aguenta para o mesmo perfil de hardware, além de ter brechas de segurança que surgem com mais frequência e demoram mais a serem corrigidas que as principais distribuições Linux.

Outros exemplos de softwares livres de sucesso

O Linux foi apresentado como exemplo por ter sido o primeiro entre os mais importantes, mas não é o único a fazer sucesso. Podemos citar outros casos:

  • Apache – servidor web mais usado no mundo, que comumente trabalha junto com uma distribuição Linux para fazer servidores de internet funcionarem.
  • mySQL – segundo mais utilizado gerenciador de banco de dados em servidores no mundo, atrás apenas da Oracle.
  • WordPress – de longe o líder mundial no segmento de CMS (Content Management Systems) ou sistemas gerenciadores de conteúdo
  • Tensor Flow – a mais usada biblioteca de código voltada para aprendizagem de máquina e inteligência artificial, mantido pelo Google.
  • Chromium – o mais utilizado software para navegação web, utilizado pelo Google para o desenvolvimento do seu navegador Chrome.
  • BigBlueButton – o único sistema de videoconferência que conheço voltado especificamente para educação, embora possa ser utilizado para outros fins, totalmente integrado ao Moodle. Nós trabalhamos com ele há muitos anos (gfarias.com/bbb) e eu conheço e sou amigo pessoal do seu fundador e CEO, Fred Dixon.
  • H5P – um projeto de software livre lançado em 2013 e voltado para facilitar a criação de recursos interativos na web para quem não é programador, que está tomando conta do mercado rapidamente por permitir que um professor sem qualquer conhecimento de programação monte conteúdos interativos e engajadores. Não à toa o Moodle já tem H5P incorporado, e nós também trabalharmos com tal tecnologia (gfarias.com/h5p).

E o Moodle?

O Moodle bem poderia estar na lista acima, mas tenho muito o que falar a respeito, por isso uma seção só para ele. O Moodle é o mais utilizado LMS (Learning Management System) ou sistema de gerenciamento de aprendizagem no Brasil, na Europa e no mundo, só perde na América do Norte (por bem pouco). Trata-se de um software livre bastante maduro, com mais de duas décadas de existência, pois teve o seu surgimento no finalzinho dos anos 90 (quando eu comecei a usá-lo), apesar de que na Wikipedia (em inglês) ele é dado como lançado em 20 de agosto de 2002 (aniversário de Martin Dougiamas, seu fundador e CEO, também meu “parça” de longa data).

O Moodle conta com uma comunidade que ajuda no seu desenvolvimento, composta não apenas por indivíduos, mas também empresas e instituições de ensino do mundo todo. Sua rede de parceiros oficiais (no Brasil fomos os primeiros, desde 2006), contribuem mensalmente, seja técnica ou financeiramente, para a manutenção e atualização do software. Em 2018, a Education for the Many, um fundo britânico de investimento social, investiu US$ 6 milhões no software, trazendo uma das sedes do Moodle para Barcelona (a outra fica em Perth, Austrália). Estes são apenas alguns sinalizadores da estrutura robusta e profissional que sustenta o Moodle, algo merecedor de um artigo só para isso.

O resultado disso se mostra em números, parte deles divulgados na página de estatísticas das instalações Moodle registradas (uma parte ínfima das instalações efetivamente em uso), que podem ser vistos em https://stats.moodle.org/. Outro indicador de sucesso é a lista recente de prêmios que o Moodle já ganhou só esse ano, relatada em outro artigo (vide aqui), publicados pelo site de comparativo de softwares G2 (g2.com).

No Brasil o Moodle é utilizado por todas as instituições públicas de ensino superior do país, com destaque para Unicamp, USP, UFSC, UFRGS e UFPE. Dentre as instituições privadas, algumas também muito conhecidas, como IBMEC, FGV e Insper, algumas delas já tendo sido nossas clientes (vide gfarias.com/clientes). Também utilizado por muitas empresas de destaque nacional e internacional, como Microsoft, Toyota, Shell, Macdonalds, IBM, Panasonic, Usiminas, Eletronorte, Fundação Roberto Marinho, dentre muitas outras marcas conhecidas nacional e globalmente (algumas delas também nossas clientes).

Enfim, ser um software livre não implica em ser de menor qualidade do que um software proprietário pago. Pelo contrário, se houver profissionalismo e robustez na estrutura que o sustenta, o software livre geralmente é melhor do que seus competidores proprietários. Não por acaso tem um concorrente do Moodle, um LMS que chamemos de C, que tem uma versão livre só para atrair incautos na busca desta qualidade de código aberto. Mas na realidade é uma farsa, pois a versão paga do software é que funciona direito e tem recursos comparáveis aos do Moodle, mas se paga caro pelo seu uso e seu código não é aberto, apesar de ser (teoricamente) a versão paga da sua versão que é disponibilizada “para inglês ver como livre (pero no mucho)”.

Github

Lançado em 2008, o Github (github.com) é uma plataforma de hospedagem de código-fonte de milhares de softwares livres. Ela permite que desenvolvedores destes softwares compartilhem, colaborem e gerenciem projetos de software, incluindo praticamente todos os citados neste artigo. Se depois deste longo texto você ainda não se convenceu que software livre é um bom negócio, siga o exemplo de Bill Gates, da Microsoft, que em 2018 comprou o Github por US$ 7.5 bilhões. Se você vê Bill pulando de um prédio, devia fazer a mesma coisa, pois alguma vantagem há em dar aquele salto. Afinal, desde 1981 quando ele lançou o DOS, o precursor do Windows, ele pode até não entrar em negócios que depois se mostram vantajosos, mas nunca entra em um que não seja extremamente vantajoso. Por isso, faça como Bill, e abrace software livre de qualidade como Moodle, BigBlueButton e H5P, você e sua empresa ou instituição só tem a ganhar.